O Problema do Sentido (Li) na História

Uma coruja em viagem encontrou com uma codorna, e esta perguntou: pra onde você vai, coruja? A coruja lhe respondeu: vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclamam muito do meu piado. Disse-lhe então a Codorna: “aceite uma sugestão: mude o seu pio, ou vão te odiar onde você for. (Liu Xiang, -79-8)
No que se assenta a ‘história científica’? Ao lermos o pequeno conto de Liu Xiang, temos um exemplo de uma narrativa que não foi ‘real’ (porque corujas não conversam com codornas), mas que pode ser entendida como ‘verdadeira’, posto que ela guarda um sentido moral que pode ser apreendido pelo leitor. A questão, no entanto, é a seguinte: se na dita ‘história científica’ a realidade é a prova da veracidade (e vice-versa), um apólogo moral pode ser entendido como história, de fato?

No caso extremo do diálogo entre a coruja e a codorna, sabemos que este não é possível, a princípio – embora autores como Zhuangzi supusessem que podiam compreender mesmo os sentimentos dos animais, como ilustra essa história retirada de seu livro:

Zhuangzi e Huizi passeavam sem destino na ponte que fica sobre o Hao quando o primeiro observou - "Veja como os peixinhos nadam! Nisso consiste a felicidade do peixe".
- "Você não é um peixe", interrompeu-o Huizi, "como então pode saber em que consiste a felicidade de um peixe?"
- "E você não sou eu", volveu Zhuangzi, "como pode então saber que eu não sei?"
- "Se eu, não sendo você, não posso saber o que sabe", argumentou Huizi, "segue-se que você, não sendo um peixe não pode saber em que consiste a felicidade de um peixe".
- "Voltemos à nossa questão original", declarou Zhuangzi. "Perguntou-me como sabia qual a felicidade de um peixe. Só essa pergunta prova que você sabia que eu sabia. Sei-o (pelo que sinto) sobre esta ponte".

Mas a visão de Zhuangzi não era compartilhada pelos historiadores, em geral confucionistas, que buscavam delimitar um espaço da ficção pura e simples, e um espaço definido para a narrativa histórica. O problema consiste, portanto, na percepção de que há uma desconexão entra o que pode ser dito ‘real’ – ou seja, aquilo que pode ser ‘comprovado’ textual ou arqueologicamente, e o que pode ser ‘verdadeiro’ – ou, aquilo que possua um sentido perceptível e constatável. Que se entenda: o leitor percebe uma conexão quase direta com o apólogo moral, que ele de imediato compara com suas ‘experiências de vida’; contudo, há uma imensa dificuldade, por vezes, em reconhecer a ligação entre um determinado contexto histórico e a cultura que atua sobre o mesmo. A civilização chinesa, por exemplo, pretende-se herdeira e mantenedora de uma cultura milenar e ancestral; mas em que momento essas raízes são identificadas e empregadas para justificar uma decisão atual, ou um modo de compreensão eminentemente contemporâneo? Em comparação, tomemos o caso do Brasil: quem é capaz de justificar seus atos ou seu modo de pensar baseado na idéia de que esses estão enraizados na cultura há séculos? Por inversão, quando o fazem – afirmando que tal elemento x ou y é histórico, e por isso justificável em sua manifestação contextual, qual é o nível de conhecimento daqueles que o afirmam para garantir, ‘realmente’, que tal proposição seria ‘verdadeira’? Afirmações racistas e estereotipadas são usualmente calcadas em erros históricos já devidamente analisados e superados; e assim mesmo, como eles permanecem a alcançam o status de ‘verdade’ na sociedade, mesmo tendo se passado décadas, ou mesmo séculos, de sua invenção?

Os historiadores chineses se debruçaram sobre o problema para evitar que ocorresse uma dissolução da própria concepção de história. Veja-se o caso da Índia; lá, a distinção absoluta da idéia de sentido (como alma) em relação à manifestação (como matéria) fez com que não se construísse uma noção de história tal como conhecemos, mas sim, a busca de valores espirituais que desprezavam em absoluto a materialidade como condição de continuidade ou evolução (veja o meu texto Uma introdução a história da civilização indiana). Isso podia ser interessante para a Filosofia; mas para a História, a necessidade da evidência é uma condição indispensável para a associação de sentido-forma, que a caracteriza como uma área específica das literaturas chinesas.

Vejamos um segundo caso, para que possamos prosseguir na elucidação do problema, do ponto de vista chinês:

O Rei Xuan de Chu perguntou aos seus ministros:
— Ouvi dizer que o povo do norte teme Zhao Xisu. É verdade isso?
Os ministros não deram resposta, mas Zhangyi disse ao Rei:
— Era uma vez um tigre que procurava animais para comer e apanhou uma raposa. E a raposa disse: “Como ousas comer-me? O Deus do Céu me fez chefe do reino animal. Se me comeres, estarás pecando contra Deus. Se não crês no que digo, acompanha-me. Marcharei na frente e tu me seguirás”. O tigre foi, pois, com a raposa, e os animais fugiram ao se aproximarem os dois. O tigre não percebeu que os animais não tinham medo da raposa, mas dele. Ora, Vossa Alteza Real tem um território de cinco mil li quadrados e um exército de um milhão de soldados, e deu todo o poder a Zhao Xisu. Portanto o povo do norte teme o seu poder, mas na realidade o que receia é o exército do Rei, como os animais tinham medo do tigre. (Zhanguoce)

Essa historieta foi retirada das ‘Crônicas dos Estados Combatentes’, que se pretendia um livro histórico, ainda que anedotário. Foi coligido pelo mesmo Liu Xiang (do primeiro trecho), da dinastia Han, especialista em historietas e fábulas. Mas embora se trate de uma narrativa aparentemente ficcional, qual a possibilidade de distingui-la como uma ‘história’ de fato, e não uma fábula? Percebamos o seguinte: tanto o rei Xuan como Zhangyi foram personagens relativamente comprováveis, o que faz com que a história contada pelo segundo não seja necessariamente ‘real’, mas que continue sendo ‘verdadeira’. Mas por ser Zhangyi um personagem que existiu, sua história teria também acontecido? Zhangyi não parece ter pretendido falar com os animais, assim como Zhuangzi. Dito assim, sua história poderia ser absolutamente descartada como exemplo, já que não se assentava em nenhum evento considerado ‘real’. No entanto, o rei lhe dá ouvidos. Era o rei Xuan um ingênuo, então? Percebemos que a questão precisa ser abordada de outro modo, pois.

No texto Uma história inventada, discuti a questão das analogias e inversões. Uma analogia se torna tão boa quanto ela se identifica com um princípio (Li 理) em questão. Para a história, ela necessita uma aproximação íntima e direta com a evidência, sob o risco de ser compreendida como meramente fabulária ou ficcional. Por conta disso, uma história só passa a existir se, a partir da uma evidência, se apreende o princípio que nela subjaz. O que caracteriza a história chinesa, portanto, é que ainda que ela dependa de fontes ou artefatos, ela só existe também em função dos mesmos. A história pode ser uma ficção, mas baseada em evidências que associem sua ‘realidade’ e sua ‘veracidade’. Volto a um exemplo que já usei em outros textos: há uma parábola budista que diz que uma árvore cai no meio da floresta, e ninguém a viu cair. Mas por isso, podemos afirmar que ela não caiu, de fato, apenas porque ninguém a viu cair? A história chinesa escapa dessa armadilha retórica afirmando o seguinte: sim, a árvore caída ‘não existe’ enquanto não for descoberta. Ela pode ser suposta, mas a suposição não é prova.

Em parte era a isso que Confúcio, e depois Xunzi, se referiam quando falavam da ‘retificação dos nomes’. Há uma importância fundamental em atrelar os conceitos e idéias a algo palpável ou a um sentido determinado. Sem isso, a pura especulação não pode provar a existência do que quer que seja, desencaminhando a investigação sobre as coisas. Visto assim, o rei Xuan seria realmente um ingênuo ao aceitar a sugestão de Zhangyi sem uma ponderação profunda.

Mas precisamos compreender, portanto, qual o artifício que é usado na fábula e que a distingue da ‘história científica’. Ele reside, fundamentalmente, na ‘inversão da manifestação’. Um princípio (li), em geral, é captado nas evidências, que são suas manifestações. A investigação e a busca da compreensão desses princípios é a essência do trabalho histórico. Quando o princípio já é conhecido, porém, e se lhe dá uma nova roupagem (uma nova forma textual ou imagética), descolando-o do contexto, mas buscando manter a idéia central, essa é a fábula ou a anedota. Esse é o perigo para os governantes, estudiosos e sábios, de se basearem em opiniões cujo fundo histórico é desconhecido ou não parece ser verificável. A história seria a base para um conhecimento verificável, vivido, sobre a qual a ponderação encontraria uma base ‘sólida’ para assentar-se e desenvolver-se. Os chineses reconheciam, assim, o perigo do sofisma como uma proposição hábil, mas carente de um alicerce que seria dado pela história. Para compreender isso, me valho aqui de um terceiro exemplo, dado por Su Dongpo (1037 +1101):

Era uma vez um cego de nascença. Nunca tinha visto o sol e perguntava como ele era para as pessoas. Alguém lhe disse: “é como uma bandeja de latão”, e quando o cego, um dia, deu com uma bandeja pendurada, ouviu o som de metal e guardou-lhe como recordação do sol. Um dia, porém, tocaram sinos de bronze e o cego pensou que era o sol. Até que alguém lhe disse: “a luz do sol, na verdade, é como uma vela”. Um dia, o cego apalpou a vela e pensou que esta era a forma do sol. Assim, um dia encontrou um pedaço de bambu no chão e pensou tratar-se do sol. O Sol é muito diferente do sino ou do bambu, mas o cego não pode ver isso porque nunca viu o sol. O Dao (Tao) é mais difícil de ver do que o sol, e por isso os homens são com o cego. Ainda que vocês façam comparações, exemplos e tratados, o Dao será como o sol para o cego, parecido com uma bandeja, com um sino ou um bambu. Sempre imaginaremos uma coisa, esquecendo de outra. Assim, os homens se afastam cada vez mais da verdade, dando lhe aparências através de nomes. Todos estes enganos são tentativas de compreender o Dao.

Su Dongpo utiliza de modo impecável a analogia. Primeiramente, ele mostra o problema da dificuldade de associação das idéias com a materialidade; em segundo lugar, como a incompreensão do conceito (Dao) leva a associações errôneas com os objetos que se supõem suas manifestações; por fim, subentende que se alguém não conhece a manifestação do conceito em si, não pode supor, assim, quais coisas são manifestação de um princípio – pois é a investigação das coisas que leva ao princípio, e não o contrário. Su demonstra, com habilidade, como inverter o uso de um sentido criando uma analogia que pode ser, finalmente, enganosa – ainda que pareça coerente.

Assim, os chineses escaparam da armadilha das fábulas atrelando à narrativa histórica a existência das evidências. Pode-se elucubrar sobre os vestígios, mas não se pode – ou ao menos, não se deveria - imaginar sem as evidências, no caso do que é histórico. Essa delimitação foi importante para que não se consolidasse na China a busca de uma ‘verdade imutável’, posto que a história estaria sujeita a descoberta do vestígio histórico; e ao mesmo tempo, preservou-se a flexibilidade de compreender que os modelos históricos podiam ou não ser usados e adaptados, sem que fossem transformados em pilares dogmáticos. A inspiração no passado baseava-se na experiência entendida como verificável, em detrimento das propostas demagógicas baseadas na suposição ou no fabulário. Conseqüentemente, os contos foram amplamente empregados para entretenimento ou no ensino, como um meio de fazer com que o conhecimento dos princípios fosse feito de modo mais acessível, embora se soubesse conscientemente que tal procedimento caracterizava-se como uma associação incompleta entre idéia e materialidade. É de notar que os historiadores confucionistas tivessem um grande repúdio pelas historietas, embora ocasionalmente as citassem. A seriedade de um trabalho historiográfico baseava-se, justamente, na possibilidade de assentar-se em algo palpável.

Não é sem dificuldade, portanto, que imaginamos as tensões existentes na tradição historiográfica chinesa, ao perceber que há uma complexa e tênue separação entre a concepção de história como conhecimento do passado e a mera exemplificação sapiencial ou anedotária da fábula e do conto. Por outro lado, a habilidade em lidar com essas dificuldades serviu perenemente como um motor para aperfeiçoar a historiografia tradicional chinesa e sua capacidade crítica, realizando o embate contínuo entre as tentativas arcaizantes das histórias dinásticas, financiadas pelo Estado, e as narrativas autônomas reescritas pelos sábios. Sem ‘verdades dogmáticas’, os chineses construíram ‘afirmações axiomáticas’ capazes, porém, de fazer distinguir a história das demais literaturas ficcionais.

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