O sonho do livro

Era um letrado – e como tal, adorava livros. Colecionava-os, lia-os, e adorava sua biblioteca, um pequeno santuário no qual se escondia. Nesse manancial, colhia as respostas que precisava; às vezes, explorava-a em longas aventuras; em outras, descobria somente o mistério - e nesse caso, acabava tendo que correr atrás de novos livros.

Não tinha roupas chiques, nem deleites elegantes. Era sossegado, comia de modo simples, e adorava seus livros; tanto que, ao pensar na morte, preocupava-se em quem iria cuidar dos seus amigos de papel, para que eles continuassem servindo a humanidade.

Uma noite, porém, ele sonhou: sonhou que andava entre dois bairros conhecidos, que existiam de fato no mundo real, quando ele estava acordado. Contudo, num canto entre eles havia uma livraria, que só estava ali, em seu mundo de sonhos.

Como não lembrava que era um sonho, sabia da estranheza da tal livraria naquele lugar, mas não se incomodou, ao contrário: entregou-se a paixão de fuçar as prateleiras, e ficou com água na boca com todos aqueles volumes, capas, tipos, fontes, textos, enfim...

Mas um livro chamou-lhe a atenção: era uma história da China, uma que ele nunca tinha visto. Não conhecia o autor, mas lhe pareceu fascinante; uma breve folheada revelou páginas magníficas e excitantes, do tipo que ele gostaria de ter escrito. Entusiasmado, ele ia ler mais, quando,

Ele acordou.

Acordou chateado, e incomodado. Ele adorara aquela livraria que parecia não existir na sua “vida real”, mas que estava ali, no mundo dos sonhos. O que lhe importunou, porém, foi o livro. Ele queria tê-lo; queria lê-lo. Queria saber mais sobre aquela história secreta, extraordinária, desconhecida. Queria o livro, e não sabia como fazer.

Demorou-se alguns meses nesse leve, mas desconfortável sentimento, sem que isso mudasse de fato sua vida comum – afinal, era um sonho – mas como bom leitor, queria ter visto mais daquele livro. Tinha capa velha e desgastada, mas estava bem conservado, um sinal de robustez, respeito e singularidade. Era uma curiosidade, mais que uma obsessão, ler aquele livro; no entanto, precisava se conformar.

Então, uma noite ele sonhou novamente.

Atravessava a praça, que levava até a livraria, aberta para a rua. Os livros maiores, como as enciclopédias, estavam arrumados na calçada, amarrados, esperando que alguém comprasse a coleção.

Ficou feliz de estar ali. Sabia agora que era um sonho, e como tal, não estava lá por vontade própria, mas por acidente.

A oportunidade era única. Correu até a livraria, desejoso de ver o livro. Antes de encontrá-lo, porém, esbarrou com vários outros títulos que roubavam a atenção. Era difícil se concentrar; haviam muitos, e todos pareciam ter algo de especial, mas ele se forçou, andou, e chegou na prateleira.

Ele estava lá. Não no mesmo lugar, alguém o havia mexido, ou lido. Excitado, o letrado pensou mais uma vez em lê-lo. Melhor: resolveu comprá-lo, e levar para a casa.

Mas não tinha dinheiro. No sonho, os acidentes sempre acontecem.

O livro era um pouco caro – não muito, apenas acima da média – e o incomodava mais uma vez. Desesperado, e sem dinheiro, ele resolveu pedir ao livreiro que o guardasse, para que ele pudesse buscar dinheiro em casa. O livreiro, meio careca, bigodudo, do tipo gordo simpático, mais parecido com um dono de boteco, prometeu guardá-lo, com um desdém carinhoso do tipo “certo, certo, espero que você venha mesmo buscar...”.

Feliz, a ansiedade tomou-lhe por inteiro. Havia entre a praça e a livraria uma pequena rua, na qual passavam ônibus. Um deles ia para sua casa. Atravessou a rua, tomado pelo desejo inevitável de ter o livro, e foi esperar o ônibus.

Ia pegar o dinheiro logo, voltar no mesmo dia e comprar o livro. Mas o ônibus não vinha... Ele começou a ficar nervoso. Olhava para a livraria, pensava no seu livro, e a condução não chegava. Eram minutos sofridos e intermináveis. Começou a ficar nervoso, preocupado,

E então, acordou.

Acordou tenso, precisava urinar. O pior: teve o livro na mão, mas não o leu nem o comprou. Não sabia o que fazer. Agora estava enraivecido. Queria ver o livro, queria ler. Começou a dormir pensando na livraria, para ver se conseguia ir até lá. Leu um certo texto que ensinava a como dominar a si mesmo no sonho, para tentar voltar aquele lugar. Mas passou quase um ano, e ele não sonhava de jeito nenhum com a livraria. Chegou a imaginar bobagens; e se morresse, ele acharia o tal livro? Pensou também em largar tudo na vida real, aqueles livros todos pareciam agora prendê-lo, quando ele só queria ler um... Foi se desligando, aos poucos, do livro imaginário, desistindo de vê-lo.

Então, uma noite, ele sonhou e voltou à livraria.

Estava ali, diante dela. Controlou-se para não ser dominado pela emoção, e não se deixar levar pelo sonho. Tinha dinheiro dessa vez. Aprendera com aquele “controle do sonho” a materializar certas coisas, e o dinheiro que lhe faltara antes estava agora em seu bolso. Ele sabia.

Atravessou solene a praça, para finalmente obter o seu desejo intimo. Encontrou o livreiro no sonho, e pediu seu guardado. Com um sorriso, o livreiro respondeu:

- Desculpe, você demorou a voltar e eu o vendi.

Então, ele acordou. E estranhamente, estava mais calmo.


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