Honra e Vergonha

Recuso-me a discutir com aquele que, pretendendo buscar a verdade, envergonha-se, ao mesmo tempo, de comer e vestir-se mal.

Confúcio

O estudo da ética se fundamenta, antes de tudo, na compreensão das complexidades que constituem a moral – principalmente no que toca a sua aplicação no cotidiano.

Ao examinarmos os valores de nossa sociedade, constataremos a ampla dificuldade que existe em aplicá-los nos dilemas que se nos apresentam.

A moral é constituída num conjunto amplo de atitudes, comportamentos e noções de certo e errado cuja dimensão é difícil de apreender – quanto mais, de reduzir. Por outro lado, ela escancara mecanismos de funcionamento que tem por objetivo (não declarado) se transformarem em práticas coercitivas e impositivas, se possível se convertendo, também, em valores sociais. Atendendo ao “desvio padrão” – que cria tanto o simpático transgressor até o sociopata – estabelece-se uma tênue linha entre o apropriado e o inapropriado, de modo que os anseios pessoais sejam atendidos, ainda que ao custo da sujeição social e de prejudicar o alheio. O indivíduo aceita uma regra não dita – posto que não claramente escrita, mas aceita por consenso e conveniência – de que há meios “legítimos” para realizar o ilegítimo, e confirmá-lo como aceitável – quiçá aprovável – pelo restante da sociedade.

Foi Dominic Crossan [a partir da leitura de vários outros teóricos] quem afirmou que as sociedades mediterrânicas vivenciaram uma relação de “honra e vergonha” – sistema que data da antiguidade, mas que é amplamente cabível a algumas sociedades modernas, inclusive a nossa.

“Honra e Vergonha” traduzem-se num mecanismo perverso que submete todos os outros valores morais a ma noção distorcida de “honrado” (apropriado) e vergonhoso (inapropriado). A percepção desses valores, contudo, é que conta para entender sua aplicação, e a conseqüente visão que a sociedade tem sobre elas.

Assim sendo, um ladrão discreto ou um marido traído (ou traidor) podem ser entendidos como “honrados”, desde que mantenham as aparências. Roubar deixa de ser errado, desde que a culpabilidade não seja direta, e se dilua na sociedade – no caso do político corrupto, por exemplo, uma tal “honra” alcançada por meio de ostentação e poder, e alguma caridade populista – o protegem, inclusive, contra acusações de desonra ou vergonha.

Um homem ou mulher traídos, igualmente, não precisam defender sua honra, contato que ninguém saiba de seus “erros” ou “fraquezas” de modo “inapropriado”.

No entanto, se o indivíduo for desgraçado por acusações de “vergonha”, nada do que faz poderá ser considerado apropriado. Um administrador honesto e capaz pode ser maculado por uma única acusação vil – se lhe atacam com um suposto crime (pedofilia, violência doméstica, crime sexual, hábitos excêntricos, ou qualquer outra coisa que possa sei entendida como escandalosa), ele perde sua moral e seus direitos – ainda que nada fique provado. Um homem ou mulher, por melhores que sejam suas atuações intelectuais, sociais ou humanistas, serão considerados “fracos” ou “incapazes” de executar seus trabalhos apenas porque foram abandonados por seus cônjuges dissolutos (ou os abandonaram, por motivos “não esclarecidos”, que forçam a invasão de sua privacidade como justificativa).

Esses são apenas exemplos gerais, que nos permitem nortear o entendimento de como “honra e vergonha” se aplicam em uma sociedade. Dentro de uma (i)lógica própria, as culturas determinam o que lhes parece apropriado ou não, gerando possíveis inversões ou revalorações tão problemáticas.

No caso do Brasil, fica claro como esse sistema não apenas sobrevive, mas enraizou-se em nosso modo de pensar.

Num país “vitimológico”, a autonomia do indivíduo é superada e substituída por uma dependência quase maníaca por líderes autoritários e populistas. O estudo, a formação intelectual e moral, a dedicação interessada no trabalho são consideradas anomalias, são “vergonhosas”. Por isso se dá valor ao trabalho braçal, em detrimento da técnica ou da ciência; por outro lado, a formação superior contempla cada vez mais uma parcela social que não pensa o ensino ou a pesquisa, mas em como alcançar trabalhos que, mesmo aviltados, dão “sustento garantindo” (i.e., funcionalismo público), por um mecanismo de inversão curioso: o emprego se torna bom se o indivíduo não fizer nada- se fizer algo, passa a ser considerado pouco inteligente, pois realiza uma atitude redundante – trabalhar quando se tem o sustento “já garantido”.

É um clichê, sabemos, mas num país que arrecada mais dinheiro em um reality show do que para cuidar de crianças, percebe-se que o grave desvio que a noção de honra e vergonha cria na mente das pessoas. Professores tornam-se “inimigos”, e a exceção dos educadores demagógicos e populistas, são “envergonhados” cotidianamente, e desvalorizados. Pessoas são destratadas por suas opções sexuais e afetivas, conquanto se clama, arcaicamente, por “lavar a honra com sangue”nos casos em que o simples desentendimento ou desacordo conjugal, ao invés de dar origem a duas vidas livres e conscientes, transforma-se em uma situação de humilhação e perseguição, tudo por conta da “vergonha”.

Quer seja assim, a política, a religião, a educação e mesmo a paixão nunca serão entendidos ou discutidos enquanto valores em si, mas como meios de se obter honra ou imputar vergonha.

Esse transtorno mental e cultural é que explicam tal atraso em tudo: afinal, o pragmatismo não existe, senão como apenas um modo de executar os desatinos de “honra ou vergonha”, e atrela-nos a um passado cuja âncora não cria um porto seguro, mas justifica o medo de navegar – e inovar....

O homem honroso dá atenção especial a nove coisas. Dedica-se a ver bem o que olha, a ouvir bem o que escuta; cuida para ter uma aparência afável, para ter uma atitude deferente, para ser sincero nas suas palavras, para ser diligente nas suas ações; no meio das suas dúvidas, tem o cuidado de interrogar; quando está descontente, pensa nas conseqüências desastrosas da cólera; frente a um bem a obter, lembra-se da justiça. (...) Buscar o bem, como se temêssemos não conseguir alcançá-lo; evitar o mal, como se tivéssemos enfiado a mão na água fervente; é um princípio que eu vi ser posto em prática e que aprendi.

Confúcio

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