Quando o imperador foi embora

Desde o início, ele não parecia fadado ao cargo. Mas, ao construirmos os personagens da história – muito mais em função da necessidade do que de outra coisa – incorremos no erro de imaginar demasiado.

Foi assim com ele. Parecia um bom homem – um tanto tosco, de pensamento antiquado – mas essencialmente bom. Havia sucedido um grande líder, o construtor da dinastia, homem este dado a excessos megalômanos de quem gosta da posteridade. Ele ouviu o conselho de Laozi: “uma caminhada de um milhão de passos começa com o primeiro passo”, e fez, ao seu modo, o que era preciso. O povo nunca compreendeu – ou nunca quis preocupar-se com isso – seus excessos com as mulheres, sua faina por riquezas exóticas ou a aparente brutalidade com que administrava os negócios. Aos olhos desta gente ignorante, ele fazia a vontade do céu. Na visão dos sábios, também. É difícil pôr o mundo em movimento.

Mas seu sucessor não era assim. Contava-se a boca miúda que o antigo imperador era filho do dragão e do tigre. Este, ao visto, era filho da tartaruga e da cobra – sabia ser venenoso, mas arrastava-se ao pensar e agir.

Contudo, todos queriam acreditar num futuro promissor. Em geral, tempos difíceis são substituídos por épocas de paz e concessão. Não foi o caso. Enredado nas miragens de seu próprio poder, o imperador trancou-se na cidade-proibida, e acreditou – mais do que ninguém – que podia controlar o mundo dali.

No início, deu ordens a todos; distribui tarefas e atribuições impossíveis. Puniu inocentes, no intuito de amedrontar os culpados. Gostava de cerrar o punho e bater na mesa ao falar, crendo que assim o som de sua vontade penetraria mais fundo nos humanos. Começou, por fim, a mostrar seu lado quelônio – ou, como disse Confúcio (ao contrário) “era pronto ao falar e lento no agir” – justamente o contrário do cavalheiro ideal.

Cercou-se de concubinas, aduladores e ministros que o manipulavam com intrigas e mexericos. A distância de seu povo aumentava quanto mais ele julgava crer, por força das coisas, que exercia seu papel. Por trás da pilha de papéis – documentos, cartas, petições – resolveu que poderia dar conta de tudo. Mal o sabia que eram as coisas menos importantes; os grandes eventos lhe passavam despercebido. Acreditou que distribua cargos aos mais competentes, e deleitava-se em punir esquilos que colhiam nozes fora de hora – nada, nada escapava a sua vigilância sagaz, exceto o óbvio.

No fim, cerrado sem eu palácio proibido, esqueceu-se que nunca mais recebeu, em audiência, a voz dos súditos. As vigas da cidade estavam simplesmente podres e por cair, mas ele sabia que, sob seu comando, o mundo voltaria a ordem. Que mundo, talvez?

Julgava ele ter o céu na boca? Faltava-lhe o espírito, e todos sabiam como ele ia acabar. Os ciclos dinásticos são assim. Primeiro, o esqueceram; lembranças da figura imponente, só nas maldições, nas queixas dos abusos e nas verdadeiras conspirações que hão de destruir o mundo. Depois, vieram as catástrofes; e o fim, sempre o fim, se trata de fechar as janelas do palácio, para que não se veja o incêndio que toma conta da cidade imperial.

por Wang Dao

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