O povo que perdeu sua língua: um apócrifo do Tratado das Montanhas e dos Mares.

Viajando pelas bordas do mundo, o Grande Yu conheceu um povo curioso: eles não tinham mãos, orelhas, olhos nem língua. Eram tiranizados por um bando de idiotas, absolutamente normais em forma física, mas que faziam deles seu gado, e os exploravam de todas as formas mais vis possíveis. Yu, intrigado, indagou ao seu guia local como tal barbaridade ocorria, e porque ninguém se revoltava. Para seu espanto, o guia respondeu:

- Nos tempos antigos, as coisas não eram assim. Eram todos normais, e nasciam perfeitos. Então vieram os sábios e os ensinaram a ver a realidade; mas os idiotas disseram para o povo: “ver a realidade significa ver coisas boas e ruins. Se vocês arrancassem seus olhos, não veriam mais nada de ruim, e nós lhes contaríamos apenas o que é bom”. Então, as pessoas tiraram seus olhos. Mas os sábios voltaram, preocupados, e ensinaram a música, que os faziam refletir e denunciavam a verdade. Então, os idiotas disseram, novamente: “para que ouvir música? Ela incomoda os ouvidos, não deixa dormir, e existem tanto músicas boas quanto ruins. Se vocês tirassem suas orelhas, não precisariam mais escutar nada que os incomodasse, e nós poderíamos conduzir vocês pelas mãos”. E as pessoas tiraram suas orelhas. Mas passou algum tempo, e os sábios preocupados com a humanidade voltaram mais uma vez, e os ensinaram a se conduzir sozinhos pelas mãos, como fazem os cegos, com bengalas e pelo tato. Não satisfeitos, os idiotas conclamaram o povo e, do que jeito que podiam explicar (já que as pessoas não podiam ver nem ouvir), insistiram: “enquanto vocês tiverem mãos, terão que trabalhar duro e se esforçar. No entanto, se vocês tirarem suas mãos, nós colocaremos vocês no caminho, e vocês poderão assim andar e ir para onde quiserem”. E contra tudo que parece provável, as pessoas, que já não ouviam e nem enxergavam, perderam suas mãos. Só havia restado a língua, e vendo agora que estavam completamente escravizados pelos idiotas, e que dependiam deles para tudo, os últimos que lembravam como falar balbuciaram seus protestos. Então, os idiotas disseram: “melhor que tiremos suas línguas, pois enquanto eles puderem reclamar, ficaremos com uma má imagem diante dos outros povos”. E assim, o povo – já incapaz de reagir -perdeu sua língua. Os idiotas, enfim, se vangloriaram: “que povo perfeito nós temos. Não vê nada errado, não escuta o indesejado, não reage nem trabalha muito. E alguns ainda queriam reclamar – que injustiça!”. E assim, os idiotas acreditaram conhecer a natureza humana, e que possuíam o poder de modificá-la à favor de suas idéias”.

Yu lamentou-se e disse: “e quanto tempo será que eles esperam viver assim? Os idiotas viraram escravos dos inúteis, tanto quanto acreditam que os inúteis os pertencem como escravos. Deixemo-los. Nada há por fazer aqui. A extinção macabra é o seu destino”.

Mal Yu e seu guia saíram daquela terra, houve uma enchente. Os idiotas queriam fugir, mas os inúteis se atiraram com seus corpos sobre eles, esperando serem salvos. Todos morreram. Foi quando Yu compreendeu que a previdência consiste na trilha dos sábios, no trabalho árduo dos canais, diques, represas, e na arte única e pessoal de saber nadar só.

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