Tratado sobre o Bom Humor de um Mestre

Em toda a natureza, o que diferencia o ser humano dos outros animais é sua inteligência; esta inteligência, levada ao ápice, é responsável pela superação de algumas limitações físicas do mesmo ser humano; em sua manifestação, ela pode ser tanto apropriada como não apropriada; as manifestações apropriadas são aquelas das conquistas positivas, que levam a manutenção da vida; as não apropriadas são aquelas que levam ao apressamento do fim da vida. Do mesmo modo, a não realização das coisas na vida é negativa, pois em nada contribui para melhorá-la; e, para descobrirmos o que é bom, devemos muitas vezes nos arriscar no que parece, em forma, não ser apropriado. Vejamos o álcool; ele desinfeta as coisas, limpa feridas, ajuda no metabolismo e relaxa o corpo, mas pode ser também a causa da miséria humana e de acidentes. Vejamos a comida: ela é indispensável para o ser humano continuara viver; no entanto, em excesso, ela pode apressar a morte; sua ausência, pode apressar a morte – seja por carência, por motivos de beleza ou mesmo no conflito por ela.

Vejamos os estudos; bem conduzidos, eles levam a revelação; mal conduzidos, eles são aparência, ignorância enfeitada e uso em proveito próprio.

Por esta razão, o sábio pondera sobre as coisas e decide sobre o que é mais apropriado. E sua primeira decisão, desde a aurora do pensamento, foi o sorriso e o bom humor.

De todos os animais, o ser humano, em sua inteligência, é o único que ri. Logo, o riso, a receptividade e o bom humor são sinais de inteligência. Do mesmo modo, a sisudez, a severidade extremada, o apego às aparências e a intolerância coercitiva são sinais de pouca inteligência. Pois a regra yang yin, da oposição complementar, se aplica a tudo; e neste caso, não seria diferente.

Assim, o sábio é sempre bem humorado, e só é severo quando necessário; ri, porque o seu riso manifesta compreensão; e por esta razão, o sábio ri das coisas que são verdadeiramente engraçadas, e despreza a maldade, o riso tolo e a superficialidade; por fim, o sábio é receptivo, e não intolerante – ele é receptivo para o que é bom, e para o que enseja o bom; e é intolerante para com o que é ruim, e com o que enseja o ruim. Quanto ao ignorante, ele só vê oportunidade nas coisas; por isso ele é leniente com o que é ruim, e abre mão do que é bom sem medir as conseqüências, senão para manter sua própria posição e aparência.

Sendo assim, todo o verdadeiro mestre é bem humorado, e só se cala por alguma razão oculta; sua raiva tem sempre motivos bem definidos; a expressão de seus pensamentos e sentimentos visa alcançar um bem maior; e suas palavras buscam despertar, nos outros, a felicidade ou a reflexão.

Esta é a primeira conclusão deste Tratado.

Um homem disse uma vez, sobre Confúcio: “não é aquele sujeito que teima em fazer uma coisa, mesmo sabendo que ela não pode ser feita?”, o que significa: como sabedoria e humor, tudo pode ser feito; mas aquele que fixa seu limite antes, acreditando que as coisas não podem ser feitas, já determinou de antemão seu destino pouco propício.

Disseram sobre Confúcio: “não é um sujeito com cara de cão sem dono, que dá lições sobre sabedoria para quem quiser ouvir?”. Confúcio, ao saber disso, riu e respondeu: “ora, de onde este homem me conhece tão bem?”, o que significa: os tolos nunca entendem a liberdade e a sabedoria do sábio, tampouco seu desejo de compartilhá-la com os outros.

Diz um ditado: “desconhecidos são amigos que ainda não conhecemos”, o que significa: o sábio vê o bem em todos, e receia apenas o mal, razão pela qual age com cautela; o tolo vê o mal em todos, receando qualquer tipo de bem, porque ele mesmo não vê o bem senão como algo particular; e por isso ele age com temor e desatino.

Confúcio disse: "Um erudito coloca seu coração no Caminho; se ele se envergonha de suas roupas surradas e de seu alimento modesto, ele não merece ser escutado", o que significa: quem vive pelas aparências, se apega ao finito, e por isso vive em angústia; já o sábio faz bons amigos na pobreza ou na riqueza, divide o que tem e aprecia o que lhe oferecem. Não receia ter para si, mas sim, não pode realizar oferendas aos outros. Por esta razão tudo lhe vem; quanto ao tolo, tudo lhe falta.

O Mestre disse: "Quem sairia de uma casa sem usar a porta? Por que as pessoas insistem em andar fora do Caminho?", o que significa: mesmo sendo o claro o caminho da sabedoria, as pessoas o abandonam. Esta é uma vida infeliz. A vida infeliz é contrária à inteligência. A vida feliz é inteligente, porque é bem humorada e sábia. Logo, porque as pessoas recusam a felicidade da simplicidade e do bom humor?

“Em casa, o Mestre era sereno e alegre”, o que significa: os que conhecem a intimidade de um sábio sempre estão além das aparências. Por isso, conhecer um sábio em sua intimidade é uma dádiva; mas, ainda assim, depende do visitante aprender a lição.

O governante de She perguntou a Zilu sobre Confúcio. Zilu não respondeu. O Mestre disse: "Por que não disseste: ‘Ele é o tipo de homem que, em seu entusiasmo, se esquece de comer, em sua alegria se esquece de se preocupar, e que ignora a aproximação da velhice?’", o que significa: o verdadeiro sábio é aquele que se dedica inteiramente ao que faz, e por isso não é infeliz. Não busca para si o mérito que os outros possam dar, mas sim, aquele advindo da sabedoria. Por esta razão, o sábio sofre apenas com a ignorância alheia, e dela tem piedade, comiseração e interesse legítimo.

“O Mestre fazia uso de quatro pontos em seu ensino: literatura; realidades da vida; lealdade; boa-fé”, o que significa: ler bastante, estudar, para manter-se na via e ter sempre os assuntos em dia; sabendo das realidades da vida, ele cria os exemplos adequados; age com lealdade ao utilizá-los, de modo que as pessoas obtenham conhecimento; e boa fé, pois as razões pelas quais ele faz tudo isso são o aprimoramento humano. Por isso o sábio ri e faz rir; e quando não o faz, não é por sua culpa ou intenção.

“O Mestre evitava absolutamente quatro coisas: extravagância, dogmatismo, teimosia e presunção”, o que significa: eis aí os quatro males dos que vivem de aparência. A extravagância é o disfarce da pobreza de espírito; o dogmatismo, a salvação da ignorância e da limitação; a teimosia, o caminho da intolerância cega; e a presunção, a falsa experiência e o distanciamento da realidade.

“Na cama, ele não se deitava duro como um cadáver; em casa, não se sentava ereto como um convidado”, o que significa: como pode o ignorante fechar a porta do banheiro de sua casa mesmo quando está só? Tal é o efeito da cultura nos que vivem das aparências e se atém à forma. Estes apenas seguem as regras sociais que lhes convém. O sábio conhece a diferença, sabe o que é apropriado, mantém-se regrado quando necessário e relaxado na intimidade.

Zeng Dian disse: "No fim da primavera, terminada a confecção das roupas de primavera, junto com cinco ou seis companheiros e seis ou sete jovens, gostaria de me banhar no Rio Yi, e depois desfrutar da brisa no Terraço da Dança da Chuva, e voltar para casa cantando". Mestre Confúcio exalou um profundo suspiro e disse: "Estou com Dian!", o que significa: aqueles que acreditam que a sabedoria se obtém abrindo mão do mundo abrem, sem saber, mão da sabedoria e do mundo.

O Mestre Confúcio indagou Gongming Jia sobre Gongshu Wenzi: "É verdade que teu mestre não falava, nem ria, nem aceitava nada?" Gongming Jia respondeu: "Aqueles que lhe contaram isso exageraram. Meu mestre falava apenas na hora certa, para que ninguém pensasse que ele falava demais; ria somente quando estava feliz, para que ninguém pensasse que ele ria demais; só aceitava a justa recompensa, para que ninguém pensasse que ele aceitava demais". O Mestre disse: "Oh, é mesmo? Era realmente assim?", o que significa: a verdadeira ironia revela a tolice. Comedimento inútil, em função dos outros, nada adiante, senão para os ignorantes.

O Mestre Confúcio disse: "O fato é que nunca vi uma pessoa que amasse a virtude tanto quanto o sexo", o que significa: as pessoas não buscam a virtude, mas buscam o sexo. Por isso estão sempre exasperadas. Os que buscam a virtude, mas renegam o sexo, estão sempre nervosas e pouco sabem sobre o mundo. Os que amam a virtude e o sexo por igual estão em paz, porque sabem a justa medida das coisas, sem abrir mão de uma ou outra.

Confúcio disse: "Três tipos de amigos são benéficos; três tipos de amigos são nefastos. A amizade com os leais, os dignos de confiança e os eruditos é benéfica. A amizade com os desviantes, os subservientes e os eloqüentes é nefasta", o que significa: as regras de uma amizade verdadeira são simples.

Quando lhe falam a verdade, mesmo que doa; quando o acompanham nas horas ruins; quando promovem, compartilham e desfrutam dos momentos bons; e por fim, quando trocam conhecimento, estes são os amigos.

Quando lhe bajulam, oferecem o não apropriado como uma exclusividade, quando entendem que as coisas são trocas de favores, quando aproveitam da confiança para cometer erros e buscar sua proteção, e por fim, quando falam muito, mas pouco fazem nos momentos necessários, estes são os falsos amigos.

No entanto, quantos não se deixam enganar por isso!

Confúcio disse: "Três tipos de prazeres são proveitosos; três tipos de prazeres são nefastos. O prazer de realizar os ritos e a música adequadamente, o prazer de louvar as qualidades das outras pessoas, o prazer de ter muitos amigos talentosos é proveitoso. O prazer de demonstrações extravagantes, o prazer de divagar ociosamente, o prazer de embriagar-se de forma indecente é nefasto", o que significa: poucos sabem a justa medida das coisas.

Estudar muito, ter conversas proveitosas e apreciar a cultura são coisas boas.

Comprar bens para criar uma falsa imagem, realizar debates sem sentido, ou fazer uso de substâncias para alterar seu caráter são coisas ruins.

Por esta razão, o sábio só compra o necessário, e o faz discretamente; conversa com profundidade, e evita reuniões inúteis e pouco objetivas; por fim, embriaga-se de modo decente, junto com os amigos, onde expõe com liberdade seus pontos de vista, enseja o debate profícuo e exala o mal.

Quanto ao ignorante, ele estuda para superar os outros, com intenções subjetivas e pouco apropriadas; suas conversas somente tratam de conspiração, maledicência ou vagam em bobagens, como forma de atrair a atenção para si; por fim, sua apreciação da cultura é superficial, e somente serve ao interesse de mostrar-se extravagante.

Mestre Confúcio disse: "Zilu, já ouviste falar das seis qualidades e suas seis perversões?" - "Não". - "Senta-te, eu te contarei. O amor pela humanidade sem o amor pela aprendizagem degenera em tolice. O amor pela inteligência sem o amor pela aprendizagem degenera em frivolidade. O amor pelo cavalheirismo sem o amor pela aprendizagem degenera em banditismo. O amor pela franqueza sem o amor pela aprendizagem degenera em brutalidade. O amor pela coragem sem o amor pela aprendizagem degenera em violência. O amor pela força sem o amor pela aprendizagem degenera em anarquia", o que significa: são poucos os que percebem a sutileza do aprendizado, e o princípio da sabedoria que percorre o estudo. Por isso os tolos somente se atêm às formas.

Zigong perguntou: "Um cavalheiro tem ódio?" O Mestre disse: "Tem. Ele odeia aqueles que repisam o que é odioso nos outros. Ele odeia os inferiores que difamam seus superiores. Ele odeia aqueles cuja coragem não é temperada por modos civilizados. Ele odeia os impulsivos e os teimosos". Ele continuou: "E vós? Não tendes vossos próprios ódios?" - "Odeio os plagiários que fingem ser eruditos. Odeio os arrogantes que fingem ser valentes. Odeio os maliciosos que fingem ser sinceros", o que significa: mesmo um sábio bem humorado não está isento da ira – isso não seria natural. Mas o sábio conhece as raízes daquilo que despreza, enquanto o tolo se compraz nelas.

Esta é a segunda conclusão deste Tratado.

Por todas estas razões, o sábio ri; suas lições são temperadas com bom humor; seus momentos de fúria têm direção certa, e visam a extinção de um mal. Quando disposto a revelar um erro, o sábio o faz de modo apropriado, que pode ser: o conselho, a ironia ou a admoestação. Usa palavras chulas em momentos de humor, mas nunca em conflitos; usa palavras sérias com profundidade, mas nunca com leviandade, displicência ou exagero. O sábio busca falar de um modo que as pessoas possam entender, sendo acessível e receptivo. Os que usam de erudição para mostrar soberba e arrogância pouco conhecem de modo profundo – caso soubessem de fato, não precisariam agir assim, conhecendo o melhor caminho para se expressarem.

Por isso o sábio ri; seu bom humor é um contágio benévolo de felicidade e boas idéias; sua tristeza, a anuência de uma calamidade. Mas, porque o mundo, em sua grande maioria, ainda ignora essas coisas, as pessoas acreditam nos fortes, sorumbáticos e violentos. Admiram palavras duras e agressivas, sem medir os desfechos; muito se dispõem a revolucionar, mas poucos o fazem.

Por estas razões, os sábios têm andando sempre muito sozinhos, e sua luz se faz brilhar em ocasiões especiais. Atuam no vazio, nas sombras, e mantém o mundo em ordem. Diante de todas as crises e conflitos, a sabedoria – ainda que escondida – tem mantido atados os laços dos seres humanos. O progresso é lento, mas inexorável.

O sábio conhece estas regras e por isso, diante de todo o tempo que lhe dispõe a vida, ele ri; e por isso se mantém bem humorado.

Esta é a conclusão deste Tratado.

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