Tratado sobre a Compreensão da Arte

Ao contemplar a beleza a vastidão do Céu, vemos que o ser humano foi dotado, em sua mente, da capacidade de vislumbrar, admirar, de se incomodar ou recusar. Tais sentimentos surgem na mente, o que significa que o ser humano pode não só captar imagens da natureza ao seu redor como traduzi-las em uma idéia.

Aquilo que chamamos de Arte representa, de fato, um conjunto de meios pelos quais podemos, então, apreender os princípios (Li) das coisas e realizá-las no mundo da mutação. Quando isso ocorre, um artista consegue, assim, criar a imagem de um princípio; tal imagem desperta a mente das pessoas; e despertando suas mentes, elas se regojizam ou se incomodam, mas se aproximam mais da sabedoria. Assim, a arte é o caminho pelo qual podemos revelar o principio subjacente que existe nas coisas. Por esta razão os sábios da antiguidade gostavam de pintar, aprender musica ou caligrafia; eles compreendiam que, por estes meios, era possível atingir a mente das pessoas.

A arte, então, pode ser dita na verdade como "artes", que são: a pintura, que gera, no vazio da tela, a impressão de um principio por meio das cores e traços; a caligrafia, pela qual o artista imprime o caráter e a energia na construção de um ideograma; a escultura e cerâmica, em que o artista desbasta e molda a matéria bruta para extrair dela um principio; a culinária, pela qual um sábio busca bem servir aos outros proporcionando-lhes uma experiência sensorial única através da simplicidade dos alimentos; e a musica, pela qual o artista busca juntar partes de sons do mundo numa composição harmoniosa, capaz de tocar a mente. as artes, pois, partem dos sentidos; visão, audição, paladar, olfato e tato; e se desdobram na mente, como idéias, manifestando os princípios e as intenções.

Por esta razão pode se conhecer alguém pelo seu pincel ou por suas músicas. Nas Recordações dos Ritos, Confúcio disse: “Música é a forma segundo a qual se produzem os sons, que brotam do coração humano quando tocado pelo mundo exterior. Assim, quando nele é tocada a fibra da tristeza, são amargos e tristes os sons produzidos; quando é tocada a fibra da satisfação, são langorosos e lentos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da alegria, são brilhantes e expansivos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da ira, são ásperos e duros os sons produzidos; quando é tocada a fibra da piedade, são simples e claros os sons produzidos; quando é tocada a fibra do amor, são gentis e doces os sons produzidos. Estas seis espécies de emoção não são normais: são estados produzidos pelo toque do mundo exterior”, o que significa: quanto mais uma pessoa ouve música ou aprecia cores e texturas de forma desarmoniosa, mais ignorante o será. O sábio, contudo, admira a composição, a harmonia, sonda atingir o princípio contido na obra para buscar compreendê-la. Esta é a diferença.

Como as artes buscam manifestar os princípios que estão escondidos na matéria, quando revelados, eles penetram então na mente das pessoas e geram impressões. Eis a razão pela qual alguém pode ouvir uma musica e, mesmo não compreendendo o idioma ou a letra, satisfaz-se com a melodia; ou, ao ver uma pintura, agrada-se ou incomoda-se com o que é representado. Isso significa que, num nível básico de entendimento, as pessoas são apenas tocadas pela arte, mas não são capazes de compreendê-la. Os tolos acreditam entender de arte; que podem cantar, pintar, compor ou escrever de pronto, mas apenas atingem a superfície das coisas, e por isso nada do que fazem se sustenta; o sábio respeita as artes, pois sabe que elas podem alterar a consciência da mente e desperta-la para o conhecimento.

Por esta razão, quando alguém afirma: "não compreendo esta pintura", tal afirmação só pode ser feita em duas condições: uma, quando o ignorante espera que as imagens digam o que ele já sabe, e por isso ele fala a verdade - não compreende, mas por que sua mente não a alcança; quanto ao sábio, ele busca o sentido oculto em algo, estuda a peça para captar o principio e espera, assim, que sua mente se aprimore. Ele igualmente fala a verdade, mas por humildade.

Quando se diz; "só gosto do que posso entender", isso só pode ser dito por duas razões; a do néscio, é a de que a arte que aprecia é superficial, e por isso atinge facilmente a mente, mas pouco opera para transformá-la - eis a razão pela qual o tolo é escravo da moda, não construindo nunca opiniões sobre nada. Quanto ao sábio, ele só faz tal afirmativa se quer dizer "tenho cuidado em apreciar algo que não entendo, posto que posso descobrir que o principio que aqui subjaz não é bom, ou a obra esta mal feita" - ou seja, o sábio está aberto a tudo apreciar, mas é capaz de construir opiniões pessoais sobre isso.

Confúcio disse: "estude as seis artes", o que significa: só por meio do estudo das artes podemos saber do que elas se tratam. Sem isso, com saber do que elas tratam? O sábio estuda e medita antes de falar; o tolo fala sem pensar, e sobre todas as coisas eles tem uma opinião – mas nenhuma delas vale muito.

Esta é a primeira conclusão deste Tratado.

Sobre o valor da arte, deve-se dizer que ela constitui uma dos caminhos para a manifestação dos princípios. É sempre um caminho atual; as obras do passado, que sobreviveram e são admiradas, constituem exemplos perfeitos de artistas que conseguiram manifestar, adequadamente, um principio escondido.

Por isso a obra de arte é um jogo entre a habilidade do artista, sua mente, e a matéria bruta. O artista treina as técnicas para aprimorar sua percepção; ao aprimorar sua percepção, consegue desenvolver aspectos de sua mente; sua mente consegue, então imaginar o principio escondido na forma; e a habilidade em manifestá-lo dá-lhe primazia.

Eis a razão pela qual algumas pessoas podem ter boas idéias, mas não conseguem aplicá-las; outras são hábeis, como alguns artesãos, que no entanto nunca tiveram uma percepção nova, ou uma idéia inédita. Sábio é aquele que percebe isso, e procura o correto na arte, ou seja, manifestar os princípios e desenvolver a habilidade para tal.

Cada pessoa tem suas habilidades especiais, as propensões, e deste modo, cada um realiza um modo de arte que lhe é mais peculiar. Todos, pois, podem fazê-lo, pois isso está contido no principio (Li) do ser humano. O aprimoramento reside, exclusivamente, na vontade íntima.

Dito isso, a arte não pode ser compreendida como uma mercadoria. Quando alguém diz: "o que importa é comer bem", ele transforma o conhecimento e a delicadeza no trato com os alimentos numa coisa rude e vulgar; pois os alimentos podem ser comidos hoje, e amanhã continuaremos com fome. Mas a arte toca a mente, transformando-a.

Também, se comparada a roupas ou mercadorias, a arte é subestimada como uma simples atitude material ou decorativa; mas o que toca a mente não perece, e por isso a arte transforma a mente. As pessoas, pois, que vêem a arte como uma simples aparência da mutação não compreendem seu sentido mais profundo, e por isso tratam-na com ignorância. Os sábios, porém, sabem que por meio dela pode se alterar a percepção da mutação e atingir os princípios. É assim que os sábios mudam o mundo, e deixam suas marcas indeléveis na mente humana.

Esta é a segunda conclusão deste Tratado.

Sobre a arte, Confúcio disse: "Um vaso quadrado que não é quadrado - vaso quadrado, deveras!", o que significa: assim sendo, pode-se dizer que existe boa e má arte. A boa arte consiste naquela que melhor manifesta um princípio, por meio de uma execução e técnica adequada; que ao fazê-lo, leva-nos a pensar, e toca nossa mente; ao tocar nossa mente, nos permite evoluir em direção a sabedoria. Assim sendo, a arte é uma atitude sincera em desconstruir a matéria e reconstruir os princípios. Sendo atual, é nisso que ela difere da história; sua revelação é instantânea, e diz respeito às possibilidades desta época.

A má arte é aquela que é mal executada, sendo característica do aprendiz; seu trato com as técnicas e materiais é rudimentar, ou feita com uma vontade fraca; os princípios que busca manifestar são tolos, vis, pretensiosos demais ou errados. A má obra se atém mais a própria matéria do que ao sentido; sendo superficial, pouco toca a mente; pouco tocando, conduz o ser humano a atitudes irracionais, e o afasta da sabedoria. Estando fincada na matéria, ela pouco dura, e logo é esquecida. Parvos são aqueles que se deleitam com estas impressões artificiais; sempre estão a mudar de opinião, posto que nunca constroem uma.

Há ainda o caso daqueles que, aparentemente, formaram uma opinião sobre uma concepção artística. Confúcio disse; "somente o sábio e o tolo não mudam de opinião", o que significa: o sábio tem, como opinião geral, suas preferências, mas aprecia tudo, pondera sobre as coisas e expurga o que é ruim; o ignorante se aferra a uma única coisa, é intransigente com todo o resto, despreza a apreciação do mundo e se orgulha disso. Suas impressões são materiais, e ele nunca é levado a sabedoria por elas. Eis a razão pela qual não muda de opinião. Por isso, o sábio pondera sobre as coisas e decide o que é mais apropriado.

Xieho definiu as seis regras básicas para a execução da pintura, que podem ser estendidas para a arte. São elas:

 Ritmo e vitalidade, que significa: tudo tem um rimo para ocorrer. Com pressa, ficamos cansados; inertes, não saímos do lugar; o sábio descobre o ritmo e faz as coisas de acordo com as possibilidades e circunstâncias.

 Padrão de execução significa: devemos conhecer os meios pelos quais vamos expressar algo, desde sua matéria até saber se captamos devidamente o principio. Não se pode esculpir no esterco, tal como não se pode moldar o jade.

 Semelhança, que significa; se captamos o principio de algo e o expressamos corretamente, as pessoas – mesmo os mais leigos – conseguiram compreender o que queríamos dizer. Num sentido mais profundo, apreciarão a beleza, mesmo sem alcançá-la.

 Cor e Detalhamento, que significam: conhecer a luz, os detalhes e os modos apropriados de expressar uma idéia, tal como ela surge na mente. Alinhar mão e mente num único movimento, que se desdobra no ritmo.

 Composição significa: unificar os princípios acima.

 Modelos e variações significam: ter mestres como guias, pois eles já trilharam o caminho no qual alguém se propõe entrar. Suas obras são modelo, inspiração, e exemplo de método. Seguí-las é o meio do caminho. Representá-las fielmente, o centro; superá-las, é a realização íntima e pessoal.

Por estas razões, o sábio nunca despreza as artes. No seu estudo, aprende a compreendê-las e empregá-las; na sua prática, aprende a vivenciá-las e senti-las; no exercício das duas condições, ele aperfeiçoa sua mente.

Esta é a conclusão deste Tratado.

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